Guerreiros do Sol e mais: cangaço renasce no streaming com olhar feminino 503947
Novo folhetim do Globoplay reforça uma safra de produções do tema 6g561i

Durante um tiroteio intenso entre o bando de cangaceiros liderado por Josué (Thomas Aquino) e o fazendeiro Idálio (Daniel de Oliveira) e seus capangas, Rosa (Isadora Cruz) pega um revólver e mata o enteado a sangue-frio, dando início à própria jornada como uma pistoleira que a a ser procurada pela polícia junto com o grupo. O motivo que levou a protagonista de Guerreiros do Sol a cometer o assassinato ainda será revelado ao público ao longo dos 45 capítulos da novela que revisita o cangaço pela perspectiva da anti-heroína inspirada em Maria Bonita (1911-1938), esposa de Lampião (1898-1938). O lançamento que acaba de chegar ao Globoplay reforça uma tendência notável: as produções sobre o cangaço voltaram à ordem do dia com o streaming — e sob nova roupagem. Além de resgatar o rastro trágico de violência desses bandidos sertanejos romantizados com sucesso no cinema e na televisão nas últimas décadas, Guerreiros do Sol e séries como Maria e o Cangaço, do Disney+, e Cangaço Novo, do Prime Video, trazem um diferencial extra ao investigar esse universo por um prisma mais feminino e humanizado.

No ado, é fato, outras obras também iluminaram a bravura das mulheres naquele ambiente sumamente masculino. É o caso do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, que tinha sua própria Rosa (Yoná Magalhães), esposa submissa de um jagunço que se revela resiliente. Também marcou época o documentário A Mulher no Cangaço (1976), que trazia a realidade de algumas figuras femininas que integraram o bando de Lampião — com a mítica Maria Bonita, esposa dele, em primeiríssimo plano, claro. A nova leva de produções avança algumas casas no retrato da mulher do cangaço: mais que mostrar a capacidade delas de andar lado a lado com homens violentos, transportam-nas agora de meras coadjuvantes a protagonistas — e os dramas da condição feminina ganham realce em cena.
Centralizada na célebre esposa de Lampião, Maria e o Cangaço confere uma aura de empoderamento típica dos dias de hoje à personagem histórica real do começo do século XX. Há um tanto de anacronismo em falar de feminismo num mundo de machismo feroz como aquele, obviamente, mas a protagonista vivida por Isis Valverde até convence: ela é uma líder disposta a defender outras mulheres de abuso e ainda se descobre grávida do cangaceiro (vivido por Julio Andrade), contrapondo a imagem da “mulher-macho”, destemida e com gana de justiceira, à da mãe devotada a proteger sua prole. As nuances de gênero também dão colorido a Cangaço Novo, que transpõe o tema para o Nordeste contemporâneo, falando de pistoleiros que ainda causam terror no sertão na atualidade. A bandida Dinorah (Alice Carvalho) sofre para ser levada a sério em sua quadrilha, mostrando como até hoje a mulher precisa ralar muito para conseguir se impor em meio a uma cambada de marmanjos folgados. Lançada em 2023, a série foi uma das produções mais vistas do Prime Video não só no Brasil, mas em outros cinquenta países, segundo o site FlixPatrol.

Da literatura às telas, o cangaço sempre teve apelo popular por ser um equivalente brasileiro, digamos, do faroeste americano: um filão que seduz ao mesclar ação com dramas morais e familiares épicos. Apesar de esses grupos serem famosos na vida real sertaneja por roubos, assassinatos e estupros, também eram vistos como resistência ao coronelismo de latifundiários que aumentavam suas riquezas explorando os mais pobres. Vem desse paradoxo a complexidade de figuras como Lampião e Maria Bonita, vistos como criminosos por uns, mas como heróis por outros. “O cangaço expõe as contradições do Brasil não só da década de 1920 e 1930 como o de hoje também. Por isso ainda causa fascínio no público”, explica George Moura, criador da nova aposta do Globoplay e do canal Globoplay Novelas (antigo Viva), ao lado de Sergio Goldenberg.

Em sua encarnação na era do streaming, o gênero ganha um teor mais adulto: as novas séries proporcionam uma liberdade criativa maior, além de ousar bastante nas cenas de nudez e violência gráfica — e até mesmo explorar o romance entre mulheres, como o que será visto entre Otília (Alice Carvalho) e Jânia (Alinne Morais) em Guerreiros do Sol. Se a novela Cordel Encantado (2011), outra investida da Globo no gênero, pintava um retrato pueril do cangaço por meio de uma história de amor açucarada, o novo folhetim tempera sua trama brutal com toques de melodrama para amolecer o coração do público. No começo da novela, Rosa se mostra uma jovem prática. Mesmo apaixonada por Josué, a mocinha opta por se casar com o coronel Elói (José de Abreu), homem mais velho que pode lhe garantir segurança financeira — o que lhe parece melhor do que se envolver com o então aspirante a cangaceiro que só busca vingar a morte de seu pai, em uma emboscada armada pelo coronel. Ao longo da história, porém, Rosa se vê forçada a uma guinada dramática. “Ela é dona de si”, disse sua intérprete, Isadora Cruz, a VEJA (leia abaixo). Em alta na Globo, a atriz paraibana demonstra em Guerreiros do Sol como a representação das mulheres no cangaço evoluiu muito. Lampião que nos desculpe, mas são elas agora que fazem a história.
“Sempre quis viver maria bonita” 28h68
A atriz Isadora Cruz, paraibana de 27 anos, fala sobre sua personagem na novela Guerreiros do Sol.

O que mais a atraiu ao papel de Rosa? Como uma mulher nordestina, sempre cresci com esse sonho de viver uma Maria Bonita.
Por quê? É um papel muito icônico e que representa boa parte de mulheres sertanejas, batalhadoras, guerreiras que lutam pela própria liberdade. E a Rosa é forte, independente, dona de si.
A novela traz uma perspectiva feminina do cangaço. Por que isso é importante? Quando se pensa numa história sobre cangaço, a primeira imagem que vem à cabeça é a dos bandos de homens. Acho que Guerreiros é um sinal positivo dos novos tempos, da necessidade de dar um novo olhar sobre as coisas.
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2025, edição nº 2948